Márcia Martins Miguel
10/08/2021

Uma viagem para um lugar chamado Anavilhanas: o “inominável” ou “aquilo que não se pode traduzir”

Uma ideia é diferente de uma vivência.
No mundo das ideias, o pensamento vem claro, direto e ordenado.
Na vivência, há eventos não esperados, dificuldades não previstas e a realidade sempre supera as expectativas.
Mesmo assim, o homem sempre sonha e vive.
Passei quatro dias em Anavilhanas, arquipélago com cerca de 400 ilhas no Rio Negro, afluente da margem esquerda (conhecida por Calha Norte) do Rio Amazonas.
Eu queria cumprir uma ideia e um compromisso auto imposto de conhecer todos os afluentes do grande rio.
Quando tive a ideia, não me atentei para o tamanho do desafio que a realidade me imporia. Os afluentes que correrem para o Amazonas são cerca de 1100, segundo o Google. Se visitasse um rio por mês, de modo a conhecer, minimamente, cada um (como fiz com o Xingu e o Tapajós), levaria 93 anos. Tempo que não tenho.
Resolvi, então, conhecer o maior afluente, em tamanho e volume de água: o Rio Negro.
Busquei no naturista baiano Alexandre Rodrigues Ferreira (infelizmente ainda ignorado por alguns intelectuais brasileiros), seu relato sobre viagem filosófica pelo Rio Negro em 1783.
Chegando lá, as águas “cor de Coca-Cola”, assim como a mansidão e a beleza me impressionaram. Nos poucos dias de experiência no Rio Negro, saímos para focagem noturna com guias locais. Eles sabem que à noite é mais fácil de ver os bichos, pois eles dormem e, também, porque seus olhos brilham quando em contato com a lanterna poderosa. A vida resplandece à noite na mata!
Nós vimos jacarés, anacondas, peixes, pássaros e muitos filhotes. A vida se renovando. Em três anos, eles serão grandes animais, como seus pais. Em dez anos, serão como seus avós. Os mistérios de Eleusys na Grécia se renovavam em festivais quinquenais. A pandemia está no seu segundo ano. Talvez, ainda seja preciso mais alguns anos para que o mistério aconteça, a nova vida cresça, o “reset” do mundo finalmente surja e a floresta nativa em pé tenha valor financeiro. Mesmo que a sua grandeza seja intangível, precisamos ter tempo para que a renovação de hábitos e modelos mentais aconteça.
A experiência vivida muda a gente. No retorno a Manaus, fizemos o trajeto por hidroavião. E somente, então, no sobrevoo sobre Anavilhanas, com a perspectiva da águia e do urubu-rei, me dei conta daquilo que um livro ou ideia alguma foi ou será capaz de explicar: a dimensão indescritível daquilo tudo. As maravilhosas Anavilhanas.
Entendi que “aproximadamente” 400 ilhas não decorria de desconhecimento científico ou da imprecisão, mas da total impossibilidade de se ter um número fixo. A justa medida é uma herança cultural do pensamento grego, em que as ilhas têm o mesmo formato há, no mínimo, 5 mil anos de relatos escritos. Os monumentos e eventos estão todos ali, há séculos, em pedra. Esse modo de pensar não serve para a Amazônia. Não serve para floresta, onde a vida pulsa, onde o regime de chuvas e secas alternadas fazem com que um rio possa subir até 30 metros todos os anos, e, assim, a quantidade de ilhas muda. É entropia em estado puro. Há fatores diversos e simultâneos acontecendo no mesmo local, ao mesmo tempo e de forma imprevisível. É a natureza em sua majestade. É a lógica do indescritível, do inumerável.
Já em São Paulo, acordei na madrugada silenciosa, a “hora da sombra” e me perguntei do que tenho medo. E conclui que é de tudo que que desconheço. Ouvindo meus pensamentos me dei conta que desconhecia o sentido da palavra Anavilhanas. Recorri ao oráculo digital e encontrei seu significado tupi: “ANAUENE”.
E foi só. Além do nome de uma mulher, não encontrei tradução para o português.
Há tanto a descobrir sobre a Amazônia. Vou ligar para essa mulher e seguir em frente. Visitar o Trombetas, Juruá, Tocantins, Araguaia e muitos outros que ainda não conheço. Meu tempo urge.