Márcia Martins Miguel
19/10/2020

Um relato sobre os ensinamentos que aprendi com a experiência de conviver com os indígenas

Nasci no interior de São Paulo, na divisa com Mato Grosso. Hoje moro em São Paulo, há quase 40 anos, mas não esqueço das viagens para Mato Grosso, na época em que o estado estava sendo “aberto” pelos meus avós e pais, que estavam entre os pioneiros da região. Eram os anos 70, a conquista do Mato Grosso e da Amazônia, do coração do Brasil, era incentivada com recursos financeiros e políticos. A BR-163 estava sendo aberta para ligar Cuiabá a Santarém, (porto e ponto médio no Rio Amazonas, entre Belém e Manaus).

Era uma grande estrada de terra, cercada de florestas e desafios. Os buracos eram gigantescos! Mesmo! Eram tão grandes e tão fundos, que um caminhão poderia ficar escondido dentro deles. Quando chovia, os buracos se transformavam em piscinas de barro vermelho, onde os carros e caminhões ficavam por vezes, fazendo da BR-163 , na minha visão de criança, um tobogã. Ondulado, emocionante e úmido. Não havia acostamento. As cidades começavam a surgir na beira da rodovia, assim como o garimpo, “lei da bala”. Os urubus ficavam rodando os cadáveres dos garimpeiros, mortos por outros garimpeiros, por causa de pouco: mulher, bebida e dívidas. Os garimpeiros e seus dentes de ouros e dentes de diamantes. Delirantes. Meus pais tiveram suas terras invadidas por garimpeiros, que vinham rasgando a floresta com mercúrio e trazendo seus sonhos de enriquecer, assim como, a prostituição, a bebida, as doenças e as mortes. Eram formigas no açúcar.

Em meio a tudo aquilo uma coisa destoava: homens que andavam lado a lado no pedaço que seria o acostamento da estrada. Andavam em linha (não em fila). Andavam sorrindo e conversando, como se aquele caos de trânsito, terra e poeira ou água não estivessem ali. Ocupavam o lugar de um caminhão e seguiam assim, andando. 

Hoje entendo: eram os indígenas da região. 

Ao contrário do que estava acostumada a ver e aprender no colégio, que era andar em fila, os indígenas de Mato Grosso, naquele espaço aberto na mata pela BR 163, andavam em linha lado a lado. Nunca estavam sós. Eram grupos de 4 a 12 pessoas, todas andavam juntas, no mesmo passo.

Quase 40 anos se passaram e o meu interesse pelos povos indígenas só aumentou. Passei a ler livros dos antigos para saber sobre sua história, mas estive em algumas aldeias e pude entender o que nem os livros, nem as palavras podem contar. 

Com a minha experiência entendi que:

  1. Entre eles existem governança. Há uma clara divisão de responsabilidades e papéis. Não há dúvida sobre as atribuições. Esta divisão é consensual, orgânica e respeitada.
  2. A comunicação é sempre polida e pacífica. Eles são gentis.
  3. Se há conflito, os envolvidos conversam, mas se não há solução, eles se afastam, e com respeito. 
  4. Cada um tem sua casa, sua família. Em regra, são monogâmicos. Se separam e casam de novo. As  moradias são multifamiliares ( avós, pais/tios e netos). Eles têm propriedade privada: sua roça, sua casa, os utensílios domésticos e os adornos pessoais. 
  5. O único lugar comum a todos é o centro da aldeia, mesmo local em que estão enterrados os antepassados. É, também, o local dos rituais de cantos e danças.
  6. A pirâmide de Maslow não se aplica na aldeia. Nós temos tanto e acreditamos que temos tão pouco. Para eles, a pirâmide de necessidades é invertida: eles tendo tão pouco, sentem que tem tanto. Cantam e dançam sem bebidas, por horas, debaixo do sol escaldante. Sem beber nem mesmo água. Entram na dimensão mítica, cósmica e integrada. São o elo e parte de tudo o que os rodeia. Eles sabem quem são e sabem o que são. Conhecem sua língua nativa. Sua tradição è oral. Seus contratos também. E são respeitados.

Os ensinamentos que aprendi com eles, levo comigo e tento sempre aplicá-los em todas as áreas na minha vida. Nós todos temos muito a aprender com  eles e com a governança indígena.

Meus agradecimentos aos Yawalapitis, um dos 16 povos que habitam a Terra Indígena do Xingu, e aos Kayapos, da Terra Indígena Menkrangonoti, da aldeia Moikárákô, por me abrirem suas vidas e suas casas. 

Sinto saudades dos amigos Tumin, Ana, Watatakalu, Collor Yawalapiti, Mokuka, Nhak-ê, Nhac-jô, yJatire e seus habitantes, Bekro.

Espero voltar em breve.

*Advogada e uma das fundadoras da Ecoarts